A função social nos contratos e sua aplicação no contrato de seguro



O Código Civil de 1916 era uma codificação de cunho patrimonial, de cunho assegurador a um país que dava seus primeiros passos como República, e obtinha menos de um século de independência. Com isso, no contrato regido pela antiga codificação civil se respeitava a autonomia da vontade e a força obrigatória dos contratos entre os contratantes (pact sunt servanda), pois afinal o que importava era o cumprimento ao que estava estabelecido no contrato (“segurança jurídica”).
Com a promulgação da Constituição Federal Cidadã (1988) e do Código de Defesa do Consumidor (1990), e o avanço dos contratos padrões e auge da massificação de consumo, e sob o domínio do capital exigiu-se do legislador e do Poder Judiciário uma outra forma de analisar os contratos.

O dever de cumprimento dos contratos foi relativizado, ou mitigado com a promulgação de um novo Código Civil (2002), o qual não apenas trouxe diferença na interpretação contratual para o mero aderente, como dialogou de forma benéfica com o Código de Defesa do Consumidor e a Carta Magna, não se admitindo mais abusividades contratuais.

A melhor doutrina resume bem a transformação da sociedade brasileira, da legislação e da interpretação contratual dada pelo operador de direito:


“A sociedade de consumo, ao contrário do que se imagina, não trouxe apenas benefícios para seus atores. Muito ao revés, em certos casos, a posição do consumidor, dentro deste modelo, piorou em vez de melhorar. Se antes fornecedor e consumidor encontravam-se em situação de relativo equilíbrio de poder e barganha (até porque se conheciam), agora é o fornecedor que, inegavelmente, assume a posição de força na relação de consumo e que, por isso, ‘dita as regras’. E o direito não pode ficar alheio a tal fenômeno. O mercado, por sua vez, não apresenta, em si mesmo, mecanismos eficientes para superar tal vulnerabilidade do consumidor. Nem mesmo para mitigá-la. Logo, imprescindível a intervenção do Estado nas suas três esferas: o Legislativo formulando as normas jurídicas de consumo; o Executivo, implementando-as; e o Judiciário, dirimindo os conflitos decorrentes dos esforços de formulação e de implementação”1.

A Função Social dos Contratos está descrita no parágrafo único do artigo 2.035 do Código Civil: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. No mesmo sentido, anteriormente, já está descrito no artigo 421 do Código Civil que: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

Da leitura dos dois artigos supracitados, nota-se o claro intuito de mitigação da autonomia da vontade das partes e do dever de cumprimento dos contratos.

Os Doutrinadores Daniel Amorim Assumpção Neves e Flávio Tartuce descrevem o ponto de vista prático da função social do contrato:


“A função social do contrato constitui um regramento que tem tanto uma eficácia interna (entre as partes contratantes) quanto uma eficácia externa (para além das partes contratantes)”2.

Como exemplo de eficácia externa, o Conselho Nacional de Justiça em parceria com o Superior Tribunal de Justiça na I Jornada de Direito Civil, aprovou o enunciado 21:


“21 - Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito”3.

Assim, verifica-se que o contrato de seguro foi atingido pela Função Social dos Contratos, pois é o melhor exemplo de eficácia externa, eis que houve a ampliação de responsabilidades das seguradoras perante terceiros que se quer tinham contratos firmados com elas. Neste ínterim decisão do Superior Tribunal de Justiça é clara:


“A ação indenizatória de danos materiais, advindos do atropelamento e morte causados por segurado, pode ser ajuizada diretamente contra a seguradora, que tem responsabilidade por força da apólice securitária e não por ter agido com culpa no acidente”4.

Porém, essa eficácia externa não pode ser exercida sem que se chame o segurado aos autos, como majoritariamente é o entendimento da jurisprudência: “pois a ré não teria como defender-se dos fatos expostos na inicial, especialmente da descrição do sinistro”5.

Portanto, diante do julgamento de recurso repetitivo definiu-se que:


“Para os efeitos do artigo 543-C, do CPC, definiu-se o seguinte: a) descabe ação do terceiro prejudicado ajuizada direta e exclusivamente em face da seguradora do apontado causador do dano; b) de fato, no seguro de responsabilidade civil facultativo, a obrigação da seguradora de ressarcir danos sofridos por terceiros pressupõe a responsabilidade civil do segurado, a qual, de regra, não poderá ser reconhecida em demanda na qual este não interveio, sob pena de vulneração do devido processo legal e da ampla defesa”6.

Já, a eficácia interna também pode ser vista a partir do Enunciado da IV Jornada de Direito Civil:


“360 – Art. 421. O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes”7.

Desta forma, a eficácia interna do princípio da função social dos contratos pode ser verificada no contrato de seguro na interpretação contratual mais favorável ao segurado (artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor), no dever de informar da Seguradora (artigo 31 do CDC), a proibição da publicidade enganosa pela Seguradora (artigo 37), na recusa de atendimento à demanda do segurado (artigo 39, inciso II), o aproveitamento da hipossuficiência do segurado (artigo 39, inciso IV), elevação do seguro sem justa causa (artigo 39, inciso X), reajuste diverso do previsto em lei ou contrato (artigo 39, XI), entre tantos exemplos.

Neste sentido, Leonardo Rescoe Bessa expõe que:


“Fato é que a concentração clássica do contrato, construída no século XIX, fundamentalmente a partir dos princípios da autonomia privada, da intangibilidade do conteúdo do contrato – pact sunt servanda – e da relatividade das convenções, foi revista, cedendo espaço à cláusula geral da boa-fé objetiva, ao princípio do equilíbrio econômico e à função social do contrato”8.

Por fim, é importante ressaltar que a função social do contrato não exclui os princípios do dever dos cumprimentos dos contratos e autonomia da vontade:


"Os princípios contratuais clássicos (autonomia da vontade, força vinculante – pacta sunt servanda – e relatividade das convenções) não morreram: devem agora ser analisados sob diferente perspectiva, delineada pelos valores constitucionais de solidariedade social e proteção de dignidade da pessoa humana. Devem conviver com a boa-fé objetiva, com o equilíbrio econômico e com a função social do contrato"9.

O Princípio da função social dos contratos, portanto, trouxe a parte mais vulnerável (segurado) um equilíbrio contratual, de modo a resguardar os seus direitos e garantias, socorrendo-se ao Poder Judiciário para que possam ser revistos contratos contrários a legislação em vigor, mais favoráveis economicamente a fornecedora (seguradora) e penoso demasiadamente ao consumidor, obtendo-se revisão total ou parcial dos contratos.

A Teoria Geral de Contrato não está mais restrita aos contratantes (segurado e seguradora), mas se estende a toda a sociedade, de forma que é interesse coletivo o equilíbrio contratual, respeitando-se a regra constitucional para que o contrato tenha a função social de circulação e distribuição de renda (construir uma sociedade solidária, a reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como a promoção do bem de todos), conforme artigo da Constituição Federal.

1 GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos e. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, 8ª Ed., p. 6.

2 TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor. Direito Material e Processual. São Paulo: Método, 2014, 3ª Ed., p. 47.

3 CJF/STJ. ENUNCIADOS APROVADOS – I JORNADA DE DIREITO CIVIL. Enunciado n. 21 – em:http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf - 10/05/2016.

4 STJ – Resp 444.716/BA – Terceira Turma – Relator Ministro Nancy Andrighi – julg. 11/05/2004 – DJe. 31/05/2004).

5 STJ – Resp 962.230/RS – Segunda Seção – Relator Ministro Luis Felipe Salomão – julg. 08/02/2012 - DJe: 20/04/2012).

6 ROVER. Tadeu. Jornada de Direito Civil aprova 46 enunciados. Publicado em 15 de abril de 2013, 10h02: http://www.conjur.com.br/2013-abr-15/enunciados-aprovados-vi-jornada-direito-civil-serao-guia-justiça - 12/05/2016.

7 CJF/STJ. ENUNCIADOS APROVADOS – I JORNADA DE DIREITO CIVIL. Enunciado n. 360 – em:http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IVJornada.pdf - 12/05/2016.

8 BENJAMIM, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Rescoe. MANUAL DE DIREITO DO CONSUMIDOR. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, 5ª Ed., p. 354.

9 Cfr. MANUAL DE DIREITO DO CONSUMIDOR. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, 5ª Ed., p. 355.


Marcelo Madureira

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